Punctum

.
Roland Barthes, no seu livro a Câmara Clara, diz-nos que as fotos que são verdadeiramente fotos para si, possuem dois elementos estruturais. 1) algo nelas desperta um interesse geral, «um afecto médio». A este elemento Barthes chama studium, palavra latina cujo significado imediato é estudo, gosto por alguém, «uma espécie de investimento geral». 2) este studium é quebrado por algo que salta da fotografia como uma flecha e o trespassa. É o punctum da foto, palavra que remete para picada mas também para pontuação e marca. «O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala)». O acaso tem uma importância decisiva na visão de Barthes da fotografia, desvalorizando, por isso, as fotos encenadas.

Segundo esta maneira de ver a fotografia, uma foto pode ser totalmente inerte, despertar um interesse geral sem punctum, ou atingir profundamente o espectador. Investidas de studium mas sem punctum as fotos agradam ou desagradam sem tocar de forma especial. Estamos no âmbito do gosto/não gosto, «duma espécie de interesse vago».

A uma foto cujo studium não é trespassado pelo punctum chama Barthes fotografia unária. «A fotografia é unária quando transforma enfaticamente a «realidade» sem a desdobrar, sem a fazer vacilar (…). A Fotografia unária tem tudo para ser banal, sendo a «unidade» da composição a primeira regra da retórica vulgar (…)»

Barthes distingue punctum de «choque». Uma foto pode ser chocante e não perturbar. Pode gritar e não ferir.

Barthes dá dois exemplos destas fotos unárias, que despertam um certo interesse sem no entanto o atingirem profundamente: as fotos de reportagem em geral e as fotos pornográficas. «As fotos de reportagem são recebidas, é tudo. Folheio-as mas não as rememoro; nelas, nunca um pormenor (em tal canto) vem interromper a minha leitura». A foto pornográfica é «como uma vitrina que, iluminada, só mostrasse uma única jóia, ela é inteiramente constituída pela apresentação de uma única coisa, o sexo: nunca há um segundo objectivo, intempestivo, que venha semiesconder, adiar ou distrair».

O punctum pode ser um pormenor. «Nesse espaço habitualmente unário, por vezes (mas infelizmente, raras vezes) um «pormenor» chama a atenção. Sinto que a sua presença por si só modifica a minha leitura, que é uma nova foto que contemplo, marcada, aos meus olhos, por um valor superior. Este «pormenor» é o punctum (aquilo que me fere)». Mas o punctum não tem necessariamente de ser um pormenor pode ser uma situação de coopresença de dois elementos descontínuos ou algo difícil de detectar (está lá mas difícil de precisar).

O punctum pormenor é uma espécie de «imobilidade viva: ligada a um pormenor (a um detonador), uma explosão produz uma estrelinha na trama (…) da foto». Barthes dá como exemplo deste punctum pormenor uma foto de Lewis H. Hime: Débeis numa instituição.


Lewis H. Hime

Nesta foto «não vejo de todo as cabeças monstruosas e os horríveis perfis (isso faz parte do studium); o que vejo é o pormenor descentrado, a enorme gola Danton do rapaz, a ligadura no dedo da rapariga».

O punctum pormenor pode estar em estado latente, não se tornar imediatamente evidente e manifestar-se muito depois, mesmo quando não temos já a foto à nossa frente. Como exemplo dá a foto Retrato de Família de James Van der Zee.


James van der Zee

Numa primeira aproximação o punctum pareceu a Barthes estar na cintura da rapariga e nos seus braços cruzados atrás das costas «mas, diz ele, a foto trabalhou dentro de mim, e, mais tarde, compreendi que o verdadeiro punctum era o colar que ela trazia rente ao pescoço: porque (…) era esse mesmo colar (fino cordão de ouro torcido) que eu sempre vira usado por uma pessoa da minha família e que, uma vez desaparecida essa pessoa, ficou fechado numa caixa familiar de velhas jóias». É este pormenor que se ligou à morte que se tornou punctum. Não é por acaso que a morte pode ter importância no punctum, na segunda parte do livro Barthes vai analisar a questão da essência da fotografia no plano do tempo e da morte.

Barthes dá como exemplo de punctum enquanto coopresença de dois elementos descontínuos a foto de Wessing: Nicarágua, o exército patrulhando as ruas. Os dois elementos descontínuos são as freiras e os soldados.


Wessing

Como punctum indetectável Barthes refere a foto de Mapplethorpe Phil Glass e Bob Wilson. «Bob Wilson capta a minha atenção, sem que eu saiba explicar porquê, ou seja, sem que eu saiba em quê: será o olhar, a pele, a posição das mãos, os sapatos de ténis?»



Mapplethorpe

O punctum não se deve confundir com o extravagante. Na foto de Nadar Savorgnan de Brazza, o elemento extravagante para Barthes é a mão do marinheiro na coxa de Brazza, mas o punctum da foto é a atitude de braços cruzados do outro marinheiro.

Nadar

O punctum não é algo reflexivo que ressalte duma análise consciente. Trata-se antes de algo pré-reflexivo, pré-consciente. O punctum, diz-nos ainda Barthes, «é uma mutação viva do meu interesse, uma fulguração. Através de qualquer coisa que a marca, a foto deixa de ser uma qualquer. Essa qualquer coisa fez tilt, provocou em mim um pequeno estremecimento, um satori, a passagem de um vazio.». Isto acontece «quando a retiro do seu «bla-bla» vulgar: «Técnica», «Realidade», «Reportagem», «Arte», etc.: nada a dizer, fechar os olhos, deixar que o pormenor suba sozinho à consciência afectiva».

Livro (a ler por todos os que se interessam por fotografia):

Roland Barthes - A Câmara Clara, ed. 70, lisboa, 1981